Actividade Paroxística

domingo, 29 de março de 2015



todos os domingos são tristes, é verdade
são horas a mais, horas que me sobram
e me pisam e me esmagam e me deitam
de extremo a extremo
em cima de tudo o que é frio
e inútil.



Insónia



antes de dormir
haveríamos os dois
de saber dançar
e dizer coisas tolas
por exemplo
são cinco da manhã
e é no tecto que ando
à procura do teu braço.



quinta-feira, 26 de março de 2015


(...)
sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.
a dor de todas as ruas vazias.
os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida – e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.
a dor de todas as ruas vazias.

AL BERTO, “Horto de Incêndio”.

quarta-feira, 25 de março de 2015

terça-feira, 24 de março de 2015

Herberto Helder


*

Esta mão que escreve a ardente melancolia
da idade
é a mesma que se move entre as nascenças da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora
a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os seus recessos negros
onde se formam
as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura
fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se alumia: a língua
alumia-se: O mel escurece dentro da veia
jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, essa lua
tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo
escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia
dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponto a ponta
da figura cavada
no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento
violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz
dos braços a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem, nenhum
astro
é tao feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.


Herberto Helder,

Fico sem ar só de te ler.

domingo, 22 de março de 2015

Josef Capek, Femme à sa toilette. 1920.



Quando eu te encarei frente a frente
não vi o meu rosto.


sábado, 14 de março de 2015

I'll be your mirror
Reflect what you are in case you don't know.



Paris



Vem depressa como se já estivesses aqui

Como se imaginasses que estás depressa

num qualquer avião

Vem depressa, eu sei

que nunca tão rápido

como a tua minha nossa

imaginação.

quarta-feira, 4 de março de 2015


Le langage est une peau: je frotte mon langage contre l’autre. C’est comme si j’avais des mots en guise de doigts, ou des doigts au bout de mes mots. Mon langage tremble de désir. L’émoi vient d’un double contact : d’une part, toute une activité de discours vient relever discrètement, indirectement, un signifié unique, qui est « je te désire », et le libère, l’alimente, le ramifie, le fait exploser (le langage jouit de se toucher lui-même) ; d’autre part, j’enroule l’autre dans mes mots, je le caresse, je le frôle, j’entretiens ce frôlage, je me dépense à faire durer le commentaire duquel je soumets la relation.”
Roland Barthes, “Fragments d’un discours amoureux”.


segunda-feira, 2 de março de 2015



Quero adivinhar esta tarde parada
Nas tuas mãos
Procurar a linha onde ela se escreve
Saber se é sulco leira ou fundão
O tempo que lhe dá forma
E juro três vezes
que não, que não, que não lhes toco
Ainda que a noite esteja longe
E que não existam astros depois de ti.